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Acordo de não persecução penal: um direito ilíquido e incerto

O Acordo de Não Persecução Penal foi introduzido pela lei /2019, incluindo o art. 28-A no Código de Processo Penal. No entanto, tem gerado vários debates sobre temas sensíveis cujo o objeto é a celebração do ANPP e seus efeitos, bem como a recusa do Ministério Público relacionado à propositura. 

O que se busca elucidar no presente artigo é a autonomia e discricionariedade do Ministério Público para não propor o ANPP quando este entender, de forma fundamentada, que no caso concreto não se aplica. 

O artigo de lei em questão, em uma interpretação literária, não impõe um dever, mas faculta ao Ministério Público propor o ANPP. Do ponto de vista constitucional, o manuseio do Mandado de Segurança contra decisão do Ministério Público recusando a propositura é descabido, visto que para a propositura do ANPP não se leva apenas em consideração os requisitos do investigado, mas também deve-se levar em consideração que o ANPP não é um direito subjetivo (líquido e certo) e cabe apenas ao Ministério Público propor caso entenda que seja oportuno. 

O judiciário, por sua vez, a luz do sistema acusatório, não poderá, e nem a lei permite, obrigar o Ministério Público, titular da ação penal, a propor o ANPP visto que a atuação desta maneira transcenderá os limites estabelecidos pela Constituição Federal e o próprio sistema acusatório, devendo este atuar como órgão equidistante afim de controlar a legalidade e voluntariedade bem como homologar o acordo quando firmado entre as partes.

I – MINISTÉRIO PÚBLICO A LUZ DO SISTEMA ACUSATÓRIO

No decorrer da história dos países e do mundo, as sociedades avançavam quanto à resolução dos conflitos em diversas áreas. 

Deparamos com a necessidade de que o Estado tomasse para si algumas funções próprias que foram vedadas ao particular. Dentre elas, o uso da força e a punição ao cidadão face a conduta considerada infração penalpraticada por este contra alguém.

Mediante este cenário, passou, então, o estado investigar, acusar e condenar como forçalegitima das funções do Estado. 

Porém desencadeou, através dos instrumentos de repressão do estado, uma série de atos desumanos contra cidadãos, vários abusos do estado e diversos atos atentatórios a dignidade da pessoa humana.

Mediante este estado de autoritarismo viu-se necessário impor limites a atuação do estado e utilizar meios dos quais obtivessem os resultados desejados, mas que não violassem os diretos fundamentais dos cidadãos. O que antes era desempenhado por apenas um agente a função de investigar, acursar e condenar (Sistema Inquisitorial), houve uma separação onde cada instrumento do estado, independentes entre si, de acordo com a lei em vigor, passou a atuar em cada área tornando-se o sistema democrático e humanizado, coibindo, assim, os abusos e violações por parte do estado (Sistema Acusatório).

Atualmente, no Estado brasileiro, o Sistema Acusatório tem se tornado cada vez mais efetivo. A Constituição de 1988 estabeleceu com mais rigor um novo sistema de justiça criminal o que designou, no âmbito constitucional, funções ao Ministério Público e dentre elas a titularidade da ação penal, além das demais funções constitucionais listadas expressamente (Art. 129, Inc. I). Com a Lei Complementar n° 75, foi ampliado explicitamente as funções da instituição incluindo as diligenciais investigativas. O órgão ministerial passou a ter uma ampla atuação na sociedade.

II – MINISTÉRIO PÚBLICO, TITULAR DA AÇÃO PENAL

O Ministério Público ficou incumbido de grandes responsabilidades na nossa República após a Constituição Federal de 1.988. 

Esta instituição pertence ao Estado permanentemente, tendo como algumas funções a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Não obstante, a Constituição Federal listou, no seu art. 129, as funções do Ministério Público. Dentre elas, no inciso I, está a promoção da Ação Penal Pública. Logo, o Ministério Público passou a peticionar no âmbito do Judiciário ações penais públicas por todo o estado com as ressalvas que a lei impõe.

Vale mencionar que, a luz do Código de Processo Penal, para que seja aceita uma denúncia no âmbito do Poder Judiciário e só após passar a tramitar à Ação Penal, é necessário que a peça acusatória atenda alguns requisitos que a lei impõe. Contudo, no que concerne ao Ministério Público, basta que o mesmo esteja convencido de que houve o fato típico, antijurídico e praticado por agente culpável, formando assim sua opinio delicti.

II.I – PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL

Considerando que o Ministério Público, órgão permanecente e autônomo do estado, é o titular da ação penal, cabendo cumprir com parte do dever assumido pelo próprio estado em razão do monopólio da força, paira sobre o sistema de justiça o princípio da obrigatoriedade da ação penal, devendo o Ministério Público agir sempre que se deparar com certas situações que atendam aos requisitos legais para postular em juízo criminal.

Contudo, vale mencionar que ao passar dos anos o sistema de justiça foi se aprimorando de maneira em que a persecução penal tornou-se regra primordial como uma resposta do Estado face à infração penal. Mas com os avanços e aprimoramentos, mediante ao grande número de processos criminais, passou-se a adotar políticas externas compatíveis com o sistema penal vigente.

Sendo assim, o princípio em questão não foi relativizado, porém houve uma adoção de mecanismos que tornou a persecução penal célere e eficiente visto que os resultados, além da resposta do estado à infração penal, foram positivos e desafogou o sistema de justiça criminal nos casos que permitiam a utilização de instrumentos autorizados por lei (Transação Penal, Sursis Penal, Sursis Processual e outras).

De acordo com Barja de Quiroga: “(…) o princípio da oportunidade não significa que o poder do Ministério Público seja absoluto sobre o exercício ou não da ação penal. Em termos gerais, O Ministério Público tem liberdade de ação dentro de determinados limites, além do que, dentro desses limites, está também o submetido aos princípios da imparcialidade, igualdade e às suas atuações precedentes, de modo que deve existir sempre uma correlação entre as diversas atuações do Ministério Público, para assim manter os princípios indicados. Dessa forma, o Ministério Público atuará no processo de forma mais viva, flexível e ágil, dentro de suas diretrizes que devem ser estabelecidas. Oportunidade, tampouco, significa oportunidade política, no sentido depreciativo da palavra.” Barja de Quiroga, Jacobo López. Tratado de DerechoProcesal Penal, Vol. I, 6° Ed. Cizur Menor: Aranzadi, 2014, Pag. 469

A utilização de instrumentos permitidos em lei pelo Ministério Público, obedecendo os princípios da cadeia constitucional, não viola o princípio implícito da obrigatoriedade da ação penal, considerando que o estado, na figura do Ministério Público, age contra a infração penal para que se obtenha resultados céleres e eficientes perante o autor do fato ilícito e perante a sociedade.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moarias, em decisão monocrática, reforçou o entendimento de que, com o avanço os mecanismos de políticas criminais, o princípio da Obrigatoriedade da Ação Penal foi superado e passou a vigorar uma “Discricionariedade mitigada”. 

Segue trecho da decisão: “A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 129, inciso I, consagrou o sistema acusatório no âmbito de nossa Justiça Criminal, concedendo ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública. Durante esses pouco mais de 32 anos de vigência de nossa Carta Magna, as legislações penais e processuais penais foram se adaptando a essa nova realidade. Em um primeiro momento, não sendo recepcionadas as normas anteriores que mantinham exceções à titularidade do Parquet – como nas hipóteses de ações penais por contravenções e crimes culposos – e, posteriormente, havendo a aprovação de inovações legislativas que ampliaram aspossibilidade de atuação do Ministério Público na persecução penal em juízo.

A construção desse novo sistema penal acusatório gerou importantes alterações na atuação do Ministério Público, que antes estava fixada na obrigatoriedade da ação penal. Novos instrumentos de política criminal foram incorporados para racionalizar a atuação do titular da ação penal, transformando a antiga obrigatoriedade da ação penal em verdadeira discricionariedade mitigada. Assim ocorreu, inicialmente, com as previsões de transação penal e suspensão condicional do processo pela Lei 9.099/95, depois com a possibilidade de “delação premiada” e, mais recentemente com a Lei 13.964/19 (“Pacote anticrime”), que trouxe para o ordenamento jurídico nacional a possibilidade do “acordo de não persecução penal”.” (Grifo nosso)

A referida decisão, que denega a ordem de Habeas Corpus n° 195.725 / São Paulo, reforça que o titular da Ação Penal tem a discricionariedade para adotar medidas que podem substituir a persecução penal. Complementando os fundamentos mencionados acima, o ministro também fundamenta a interpretação da lei infraconstitucional retratando sobre o Acordo de 

Não Persecução Penal. Segue: “Ausentes os requisitos legais, não há opção ao Ministério Público, que deverá oferecer a denúncia em juízo. Entretanto, se estiverem presentes os requisitos descritos em lei, esse novo sistema acusatório de discricionariedade mitigada não obriga o Ministério Público ao oferecimento do acordo de não persecução penal, nem tampouco garante ao acusado verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente, permite ao Parquet a opção, devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo de não persecução penal, a partir da estratégia de política criminal adotada pela Instituição. O art. 28-A, do Código de Processo Penal, alterado pela Lei n. 13.964/19, foi muito claro nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público “poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições”.

As condições descritas em lei são requisitos necessários para o oferecimento do acordo de não persecução penal, porém não suficientes para concretizá-lo, pois mesmo que presentes, poderá o Ministério Público entender que, na hipótese específica, o acordo de não persecução penal não se mostra necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Repito, trata-se de importante instrumento de política criminal dentro da nova realidade do sistema acusatório brasileiro, não constituindo direito subjetivo do acusado.” (Grifo nosso).

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